ARARIPINA

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domingo, 12 de julho de 2015

MEMÓRIAS - CAZUZA, LETRAS QUE NÃO MORRERAM

Era mais uma afiada crônica da excitada juventude urbana dos anos 1980. Um retrato musicado de um sujeito vivendo as noites entre o sexo e outros prazeres como uma das possibilidades existenciais de uma geração ainda ressacada com o gosto amargo das botas militares que pisavam o País havia mais de duas décadas. Mas tão logo Cazuza cantou os versos de Pro Dia Nascer Feliz no Rock in Rio daquele dia 15 de janeiro de 1985, a canção encontrava outra conotação. Confirmava a velha máxima sobre o poder que as coisas parecem ter quando precisam acontecer.

“Estamos meu bem por um triz/ pro dia nascer feliz/ O mundo acordar e a gente dormir, dormir/ Pro dia nascer feliz/ Essa é a vida que eu quis/ O mundo inteiro acordar e a gente dormir”: acompanhado pelo coro de 30 mil vozes do festival que inscrevia o Brasil no mapa mundial e liberalizante do rock, os versos de Cazuza eram potencializados como um dos hinos do Brasil redemocratizado. O show aconteceu exatamente no dia em que Tancredo Neves era eleito o primeiro presidente civil da República depois da distensão do general Figueiredo. Ao trocar a palavra “dia” por “pro Brasil, pro mundo nascer feliz” do refrão, Cazuza confirmava a nova conotação política da canção.

Regravadas de tempos em tempos, as letras do Cazuza agora relembrado pela morte prematura em decorrência da aids há 25 anos, comprovam a atemporalidade e capacidade de gerar novos significados. Se o Cazuza dos primeiros tempos era o perfeito neorromântico que trazia a tradição lírica e o espírito passional do samba-canção ao adolescente rock brasuca, o Cazuza da Nova República se deixa contaminar pela depressão com a morte de Tancredo, o presidente eleito e que nem tomaria posse, e pelo desejo de viver a nova liberdade. A letra confirma a regra: no fim da ditadura, liberdade política e comportamental se confunde.

“Cazuza traz à tona traços existenciais, questionamentos de ordem extremamente pessoal numa época política de abertura, traz uma política do corpo, da existência. Cazuza tem uma poética muito próxima a (do escritor) Caio Fernando Abreu, de pensar que o quarto é o mundo. Faz parte de uma série de artistas cuja existência era poética. Para ele, viver era fazer arte”, diz o professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco e pesquisador de cultura pop, Thiago Soares.

Se Chico Buarque, por exemplo, é um mestre na elaboração do “eu-lírico”, com várias letras escritas na primeira pessoa a partir da subjetividade de outros personagens, vários deles femininos, Cazuza não precisa da ótica alheia para compor. Em suas letras e poesias, é impossível separar letra e vida. É o grande personagem lírico de si próprio.

Em sua fase politizada, Cazuza se coloca como o personagem a desafiar o próprio Brasil de corrupção mais visível nos versos da canção homônima (1987): “Brasil! / Mostra tua cara / Quero ver quem paga / Pra gente ficar assim / Brasil! / Qual é o teu negócio? / O nome do teu sócio? / Confia em mim”. Neste Brasil de 2015 em que, de forma inédita, o País assiste à prisão de figurões e atores notórios da alta elite empresarial nacional como os donos de construtoras supostamente envolvidos nos esquemas de corrupção em torno da Petrobras denunciados pela Operação Lava-Jato, a letra de O Tempo Não Pára parece ainda mais contundente: “Nas noites de frio, é melhor nem nascer / Nas de calor, se escolhe: é matar ou morrer / E assim nos tornamos brasileiros / Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro / Transformam o país inteiro num puteiro /Pois assim se ganha mais dinheiro / A tua piscina tá cheia de ratos / Tuas ideias não correspondem aos fatos / O tempo não pára”.
Como o Álvares de Azevedo morto precocemente aos 21 anos pela tuberculose decorrente de uma vida desregrada, Cazuza é o neorromântico que confunde obra e trajetória. A canção Exagerado (1985) é um emblema do autor que subjuga tudo em função do amor: “Que por você, eu largo tudo, carreira, dinheiro, canudo/ Até nas coisas mais banais/ Pra mim é tudo, ou nunca mais”.

Esse era o Cazuza revelado ao público brasileiro na noite de 18 de julho de 1986, quando, contrariando a imagem do vocalista agressivo do Barão Vermelho, aparece no programa de Chico Buarque e Caetano Veloso na Rede Globo cantando, a voz melancólica, versos do samba-canção Luz Negra, de Nelson Cavaquinho e Irani Barros.

A passionalidade do samba-canção seguiria como filtro de sua poética. Mesmo com o humor da canção Ponto Fraco: “Girando de mesa em mesa/ sorrindo pra qualquer um / Fazendo cara de fácil / Jogando duro / Com o coração, gracinha / Todo mundo tem um ponto fraco/ você é o meu, porque não?.” A liberação sexual aparece também com humor no romance entre dois homens sugerindo em Posando de Star (1984): “Pouco me importa o que essa gente vá falar/ falem mal/ Eu já tô pra lá de rouco, louco total / Eu sou o teu amor, me entenda / Você precisa descobrir o que está perdendo / É, o que está perdendo! / Botando banca, posando de star / Você precisa é dar!”.

No Brasil da redemocratização, Cazuza passa a ver a vida além dos dramas existenciais da juventude dourada da Zona Sul carioca de onde tinha surgido. Parceria com Gilberto Gil, Um Trem pras Estrelas (1987) fala, pela primeira vez em sua poética, do cotidiano pobre do Rio de Janeiro: “São sete horas da manhã / Vejo o Cristo da janela / O sol já apagou sua luz / E o povo lá embaixo espera / Nas filas dos pontos de ônibus / Procurando aonde ir / São todos seus cicerones / Correm para não desistir / Dos seus salários de fome / É a esperança que eles têm / Neste filme como extras / todos querem se dar bem”

Antes, em Milagres (1984), ele enxerga os meninos carentes entre os sinais de Ipanema: “As crianças brincam / com a violência / nessa cidade sem tela / que passa pela cidade. Em Billy Negão (1982), radiografava as desventuras amorosas de um bandido de morro: “Eu conheci um cara num bar lá do Leblon / Foi se apresentando: “Eu sou Billy Negão / A turma da Baixada fala / que eu sou durão / Eu só marco touca é com o coração”.

Durante uma temporada estudando fotografia nos Estados Unidos, Cazuza conheceu e aprofundou a paixão pelos escritores da geração beatnik. Ginsberg, Borrowghs e Kerouac se juntavam, então, a Fernando Pessoa e Clarice Lispector, seus gurus de cabeceira, no seu liquidificador literário.

Com a coragem suicida de um beat, gravou Só as Mães São Felizes (1985), retrato de um niilismo e desilusão com as instituições políticas mais clássicas que tomava corpo também com a redemocratização: “Você nunca sonhou ser currada por animas/ Nem transou com cadáveres / Nunca traiu seu melhor amigo / Nunca quis comer a tua mãe / Só as mães são felizes”. Lucinha Araújo, sua mãe, diria que cada verso foram sentidos como bofetadas. “É apenas uma figura de linguagem, Lucinha”, contemporizaria, no show de apresentação da canção.

Depois da confirmação do HIV aos 29 anos de idade, Cazuza faz o caminho poético inverso: politiza seu drama individual pela vida. Como em Cobaias de Deus (1989): “Se você quer saber como eu me sinto / Vá a um laboratório ou um labirinto / Seja atropelado por esse trem da morte / Se você quer saber com eu me sinto/ Vá a um laboratório, ou a um labirinto / Seja atropelado / por esse trem da morte”. Em Azul e Amarelo (1989), ele faz também um apelo religioso pela vida: “Senhores deuses me protejam/ De tanta mágoa / Tô pronto pra ir ao teu encontro / Mas não quero, não vou, não quero”.

Narcisista e exibicionista confesso, Cazuza também cantou como se fosse sua uma letra de Lobão e Bernardo Vilhena para ilustrar nossa era da superexposição: “Se ninguém olha quando você passa / Você logo acha que a vida voltou ao normal / Aquela vida sem sentido, volta sem perigo / É a mesma vida sempre igual”. O verso de Vida Louca Vida (1989) parece antecipar a rotina em que não conseguimos tomar um copo d`água sem reverberar o gesto numa rede social digital. Cazuza, enfim, acertou até no que não viu.

Do JC Online

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