Segundo os autores, que participaram de uma coletiva de imprensa on-line, o decodificador foi desenvolvido para ler a atividade cerebral de uma pessoa e traduzi-la em linguagem natural contínua. Embora levante questões sobre privacidade, os cientistas garantem que, para funcionar, o equipamento depende da colaboração do voluntário. O objetivo da pesquisa também não é invadir a mente de ninguém, disse Jerry Tang, principal autor do estudo. "Eventualmente, esperamos que esta tecnologia possa ajudar as pessoas que perderam a capacidade de falar devido a lesões como derrames ou doenças como esclerose lateral amiotrófica (ELA)."
Mas, diferentemente de outros dispositivos que já auxiliam pacientes dessas e outras condições neurológicas a se comunicar, a interface traduz qualquer pensamento que surja na mente, sem, necessariamente, que a pessoa se esforce para se fazer entender. "Também executamos nosso decodificador enquanto o usuário imaginava contar histórias e assistia a filmes mudos", disse Tang. "E descobrimos ele também é capaz de recuperar a essência do que o usuário estava imaginando ou vendo."
Treinamento
Assim, o dispositivo é capaz de capturar a essência do que uma pessoa está pensando, embora nem sempre as palavras exatas. "Por exemplo, a certa altura, um participante ouviu as palavras: 'Ainda não tenho minha carteira de motorista'. O decodificador traduziu o pensamento como: 'Ela ainda nem começou a aprender a dirigir'", contou Tang.
Outro exemplo: quando o voluntário escutou a frase "Eu não sabia se gritava, chorava ou fugia; em vez disso, eu disse: 'Deixe-me em paz'", o aparelho traduziu como: "Começou a gritar e chorar, e então ela apenas disse: 'Eu disse para você me deixar em paz'". Porém, a tecnologia ainda é experimental e não está no ponto de ser aplicada fora dos ambientes de testes. Ela depende essencialmente do uso da máquina de ressonância magnética, observam os autores.
O treinamento do programa exigiu pelo menos 16 horas de participação de cada uma das três pessoas envolvidas na pesquisa. Para funcionar, a varredura depende da cooperação da pessoa, podendo ser interrompida por estímulos mentais que desviam o foco, como um barulho externo. Tang, porém, admite haver preocupações éticas a respeito do uso do dispositivo. "As limitações podem mudar à medida que a tecnologia melhora, por isso acreditamos que é importante continuar pesquisando as implicações de privacidade da decodificação do cérebro e promulgar políticas que protejam a privacidade mental de cada pessoa. Levamos muito a sério a preocupação de que possa ser usado para propósitos ruins e trabalhamos para evitar isso Queremos garantir que as pessoas usem esse tipo de tecnologia apenas quando quiserem e que isso as auxilie."
Evolução
"Atualmente, a codificação de linguagem é feita com dispositivos implantados que requerem neurocirurgia. Nosso estudo é o primeiro a decodificar continuamente — significando mais do que palavras ou frases simples — atividades cerebrais de forma não invasiva, coletados com ressonância magnética funcional", explicou, na entrevista coletiva, Alexander Huth, professor de neurociência e ciência da computação na Universidade do Texas. Outros equipamentos que usaram gravações do tipo limitaram-se a traduzir palavras ou sentenças curtas, afirmou.
"Nosso sistema realmente funciona no nível das ideias, da semântica, do significado", diz Huth. A ressonância magnética funcional mede as mudanças no fluxo sanguíneo e na oxigenação nas regiões cerebrais e redes associadas ao processamento da linguagem. "Essa é a razão pela qual o que divulgamos no artigo não são as palavras exatas que alguém ouviu ou falou. É a essência. É a mesma ideia, mas expressa em palavras diferentes", observa.
O dispositivo ainda precisa ser aprimorado. "O programa é excepcionalmente ruim em pronomes e requer ajustes e testes adicionais para reproduzir com precisão palavras e frases exatas", assinala Huth. Além disso, requer o uso da máquina de ressonância, um equipamento que pesa 6 mil quilos. Os pesquisadores acreditam que será possível utilizar o decodificador em sistemas mais portáteis, como a espectroscopia funcional de infravermelho próximo (fNIRS). "O fNIRS mede onde há mais ou menos fluxo sanguíneo no cérebro em diferentes pontos no tempo, o que, ao que parece, é o mesmo tipo de sinal que o fMRI está medindo", afirma o cientista.
"Como costuma acontecer com qualquer avanço tecnológico, este também levanta um alerta de responsabilidade", ressalta David Rodríguez-Arias Vailhen, professor de Bioética da Universidade de Granada, na Espanha, citado pela agência de notícias France-Presse. "Se uma máquina pode acabar lendo sua mente, uma vez treinada, pode ser possível — involuntariamente e sem o seu consentimento (por exemplo, enquanto você dorme) — traduzir trechos de seus pensamentos. Nossa mente tem sido até agora a guardiã de nossa privacidade. Podemos guardar zelosamente certos pensamentos para nós mesmos, os mais indizíveis, se quisermos. Essa descoberta pode ser um primeiro passo para comprometer essa liberdade no futuro", acredita.
Sinais de consciência no momento da morte
Relatos de experiências de quase morte — como uma luz branca, visitas de entes queridos que partiram, ouvir vozes, entre outros — capturam a imaginação e estão profundamente enraizados na cultura mundial. O fato desses depoimentos compartilharem tantos elementos comuns levanta a questão de saber se há algo fundamentalmente real por trás deles.
Um estudo publicado ontem na revista Pnas fornece evidências iniciais de uma onda de atividade correlacionada com a consciência no cérebro moribundo. A pesquisa, liderada por Jimo Borjigin, professor do Departamento de Fisiologia Molecular e Integrativa e do Departamento de Neurologia da Universidade de Michigan, é uma continuação de testes em animais conduzidos há quase 10 anos, em colaboração com George Mashour, diretor fundador do Centro de Ciências da Consciência de Michigan.
Assinaturas semelhantes de ativação gama foram registradas nos cérebros moribundos de animais e humanos após uma perda de oxigênio seguida à parada cardíaca, afirma Borjigin. "Como uma experiência vívida pode emergir de um cérebro disfuncional durante o processo de morrer é um paradoxo neurocientífico", admite o cientista.
Gama
A equipe identificou quatro pacientes que morreram devido à parada cardíaca no hospital enquanto estavam sob monitoramento de eletroencefalograma. Todos estavam em coma e sem resposta. Eles tinham decidido não receber suporte para reanimação e, com a permissão de suas famílias, foram removidos dos aparelhos.
Após a remoção do suporte ventilatório, dois dos pacientes apresentaram aumento da frequência cardíaca, juntamente com um surto de atividade de onda gama, considerada a mais rápida e associada à consciência. Além disso, ela foi detectada na chamada zona quente de correlatos neurais da consciência no cérebro, a junção entre os lobos temporal, parietal e occipital na parte posterior do órgão. Essa área tem sido correlacionada com sonhos, alucinações visuais na epilepsia e estados alterados em outros estudos.
Os dois pacientes tinham histórico de convulsão, mas nenhuma ocorrência do tipo durante a hora antes de suas mortes foi registrada, explica Nusha Mihaylova, professora do Departamento de Neurologia. Os outros moribundos não apresentaram o mesmo aumento na freqüência cardíaca após a remoção do suporte de vida, nem tiveram aumento da atividade cerebral.
Devido ao pequeno tamanho da amostra, os autores advertem que não é possível, ainda, apontar implicações dos resultados. Eles também observam que é impossível saber neste estudo o que os pacientes experimentaram porque não sobreviveram. "Não podemos fazer correlações das assinaturas neurais de consciência observadas com uma experiência correspondente. No entanto, as descobertas são definitivamente empolgantes e fornecem uma nova estrutura para nossa compreensão da consciência encoberta em humanos moribundos", ressalta Mihaylova.
Três perguntas para Jerry Tang, neurocientista da Universidade do Texas, em Austin
Essa tecnologia poderia ser usada em alguém sem o conhecimento da pessoa cujo pensamento está sendo decodificado?
Não. O sistema deve ser extensivamente treinado em um indivíduo disposto, em uma instalação com equipamentos grandes e caros. Uma pessoa precisa passar até 15 horas deitada em um scanner de ressonância magnética, perfeitamente imóvel e prestando atenção às histórias que está ouvindo antes que isso realmente funcione bem nelas. Os pesquisadores testaram o sistema em pessoas não treinadas e descobriram que os resultados eram ininteligíveis.
Existem maneiras de evitar que o pensamento seja decodificado?
Sim. Os pesquisadores testaram se uma pessoa que já havia participado do treinamento poderia resistir ativamente a tentativas subsequentes de decodificação do cérebro. Táticas como pensar em animais ou imaginar silenciosamente contar sua própria história permitem que os participantes impeçam fácil e completamente o sistema de recuperar a fala à qual a pessoa foi exposta.
É possível que a tecnologia seja aprimorada para superar essas limitações?
Acho que agora, enquanto a tecnologia está em um estado tão inicial, é importante ser proativo ao promulgar políticas que protejam as pessoas e sua privacidade. A regulamentação do uso desses dispositivos é muito importante.
Por Paloma Oliveto - Correio Braziliense
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