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domingo, 26 de outubro de 2025

GERAÇÃO Z - O QUE ESTÁ POR TRÁS DOS PROTESTOS QUE ESTÃO LEVANDO JOVENS ÀS RUAS


De Kathmandu (Nepal) a Antananarivo (Madagascar), de Lima (Peru) a Jacarta (Indonésia), uma mesma energia percorre as ruas: jovens da Geração Z, conectados por redes digitais e movidos pela insatisfação com elites políticas, desafiam governos e sistemas tradicionais de poder. Embora distintos em contexto e intensidade, os protestos recentes no Nepal, Madagascar, Peru, Marrocos, Quênia e Indonésia revelam um traço comum: o sentimento de ruptura com estruturas políticas vistas como distantes, corruptas ou ineficazes.

Para o colunista da Folha de Pernambuco, o professor e ex-presidente da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), Luiz Otávio Cavalcanti, o fenômeno possui duas dimensões complementares: uma cultural, associada a traços de sociedades marcadas pela disciplina militar, e outra geracional, mais ampla, ligada a uma juventude moldada pela tecnologia e pelo isolamento emocional.

“Trata-se de um fenômeno localizado, nucleado por conta das manifestações ocorridas no Nepal, e cuja violência decorre de uma mentalidade marcial, um traço cultural”, observa Cavalcanti.

“É um segmento que tem dificuldade com o afetivo. Sobretudo por conta da tecnologia, das mídias sociais. As mídias sociais só aparentemente aproximam; no fundo, afastam”, avalia Cavalcanti.

O cientista político Arthur Leandro amplia essa leitura ao situar a Geração Z dentro de um novo paradigma organizativo. Segundo ele, os jovens operam em redes sociais horizontais, coordenadas por plataformas digitais, com repertórios de mobilização que vão de memes a transmissões ao vivo.

“Em cada um dos países, juventudes hiperconectadas, com lideranças descentralizadas e articuladas por meio de plataformas digitais, utilizam a linguagem dos memes e das transmissões ao vivo para se mobilizar contra o alto custo de vida, a precariedade do emprego, a insuficiência dos serviços públicos e a corrupção. A confiança em partidos e elites políticas é baixa, e as alianças com sindicatos e ONGs surgem de forma pontual e tática, sem constituir um comando central”, observa Leandro.

Enquanto isso, o cientista político Elton Gomes chama atenção para o caráter “anti” dessas mobilizações.

“São movimentos contrários ao sistema vigente, nem sempre acompanhados de pautas propositivas. Até podem existir, mas é preciso analisá-las caso a caso, dentro da realidade nacional”, explica.

Diferenças

Diferente das gerações anteriores, que ainda viam em líderes e instituições políticas a capacidade de atender às suas demandas, a geração Z apresenta pleitos difusos, sem lideranças claras, e um forte viés antissistema.

“Essa postura se exacerba diante de situações de opressão política, como em Madagascar, da corrupção generalizada no Nepal e das crises de representatividade das democracias contemporâneas, como no Peru”, observa Gomes.

Enquanto os millennials (nascidos entre 1980 e 1995) buscavam reformar o sistema político, criando novos partidos, leis ou espaços de representação, a geração Z (nascidos entre 1997 e 2010) vive o protesto como um gesto ético e performativo. Para Leandro, os jovens dessa geração priorizam a exposição pública de suas insatisfações, em vez da negociação política tradicional.

“Se os millennials queriam transformar o sistema ‘por dentro’, a geração Z quer desmascará-lo. A força desse tipo de protesto está na autenticidade e na capacidade de gerar impacto simbólico instantâneo, ainda que muitas vezes efêmero”, destaca Leandro.

A força das redes sociais não apenas viabilizou a difusão de protestos, mas também reconfigurou o próprio espaço público. Para Gomes, esse é o ponto de inflexão que torna o fenômeno inédito.

“As redes sociais passaram a ser espaços de articulação, debate e definição de grandes questões públicas. Isso dá nova dimensão aos protestos, comparável, guardadas as proporções, à Primavera Árabe — embora agora haja uma mistura mais complexa: protestos contra a democracia, contra a autocracia e contra o sistema como um todo.”

Arthur Leandro acrescenta que essa lógica digital cria uma dinâmica volátil. A velocidade com que a indignação se espalha favorece a mobilização, mas também a fragmentação.

“A difusão transnacional de repertórios — do panfleto físico ao ‘raid’ digital — reforça um sentimento global de pertencimento. Ao mesmo tempo, a ausência de estruturas estáveis torna os movimentos vulneráveis à dispersão e à repressão”, analisa.

Cavalcanti, por sua vez, entende que a dificuldade da inserção dos jovens no mercado de trabalho fomenta a revolta.

“As oportunidades para os jovens estão muito difíceis. A empregabilidade da geração Z está baixa, em parte por conta da longevidade populacional e também porque a tecnologia elimina postos de trabalho. Então você junta uma coisa com a outra: a inafetividade social e a falta de oportunidades de trabalho: o desfecho é a violência”, avalia.

Símbolos

O caráter simbólico desses levantes também revela a dimensão global da juventude conectada. Um dos ícones recorrentes é a bandeira do mangá “One Piece”. Para Gomes, o símbolo sintetiza uma visão libertária, inspirada em narrativas de resistência.

“O uso da bandeira de One Piece é bastante sintomático. Se trata de uma história libertária, protagonizada por Luffy e sua tripulação — os ‘piratas do chapéu de palha’ —, que se insurgem contra uma espécie de ditadura mundial, cujo braço repressivo é a Marinha. Eles buscam viver segundo seus próprios termos, o que remete à ideia de anarcocapitalismo ou anarcoindividualismo, muito presente nesse ideário — ainda que de forma não claramente formulada — dos manifestantes da geração Z.”

Arthur Leandro interpreta o fenômeno como um exemplo de “memética política”, uma forma de comunicação que transforma produtos culturais em linguagem de protesto.

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Violência

Os especialistas convergem ao alertar que a violência associada a esses protestos não é homogênea, nem sempre partindo do mesmo lado. Gomes lembra que, no Nepal, as manifestações culminaram em perseguições e mortes, mas em outros países, como Peru e Indonésia, a repressão foi localizada.

“Há, sim, um caráter potencialmente violento, que pode se manifestar em vandalismo ou hostilidade às autoridades, sobretudo diante de escândalos de corrupção e privilégios. Mas não se pode afirmar que todos utilizem os mesmos expedientes de violência”, pondera.

Leandro enfatiza que, na maioria dos casos, as estratégias são não violentas, envolvendo marchas, boicotes e ocupações simbólicas.

Transição

A análise dos três especialistas tem um diagnóstico em comum: o desencanto com as instituições tradicionais é o motor de uma era de protestos globalizados, mas a ausência de liderança e de objetivos duradouros pode limitar seus resultados.

Assim, a Geração Z emerge como força política disruptiva: tecnológica, emocionalmente fragmentada e politicamente impaciente. Segundo os especialistas, o futuro dessas mobilizações dependerá de um equilíbrio delicado entre o ímpeto de contestação e a capacidade de reconstrução institucional.

“A primeira providência de um grupo revolucionário que derruba um governo é constituir outro governo — e o grande desafio da Geração Z será descobrir que tipo de poder quer exercer”, disse Elton Gomes.

Por Ricco Viana - Folha de Pernambuco

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