A recente decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Edson Fachin, que suspende trechos dos decretos do presidente Jair Bolsonaro (PL) que flexibilizaram as regras para o armamento, não alcançará os portes já concedidos, nem o arsenal já adquirido pelos mais de 630 mil Caçadores Atiradores e Colecionadores (CACs) registrados junto ao Exército Brasileiro até este ano.
O Correio solicitou por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) dados sobre a compra, registro e perfil dos brasileiros armados. A entidade responsável por essa regulação, o Exército Brasileiro, afirmou desconhecer dados referentes aos portadores de armamentos.
Em relação aos perfis de registro dos CACs, o Exército informou que não consegue precisar o gênero (homem/mulher), nem a idade na base de dados. Também informou não ser possível segmentar a informação por unidade da federação (UF), pois os dados são agrupados apenas por Região Militar (RM).
Com a justificativa de que o sistema de dados é antigo, argumentou que não é possível realizar o levantamento solicitado. "O Sistema Militar de Gerenciamento de Armas (Sigma) foi implantado em 2003, sendo desenvolvido em linguagem de programação existente na época. Isto posto, o Sigma não foi parametrizado para extrair automaticamente registros constantes no seu banco de dados", respondeu à solicitação via LAI.
Segundo os dados recebidos, o número de brasileiros registrados como CACs no país por ano saltou de 32.970 registros em 2017 para 198.640, em 2021. Neste ano, o número já chega a 172.470 novos CACs. Quanto ao arsenal, sem contar o estoque anterior, os CACs de 2017 até hoje somam 772.854 armas, das quais 434.715 fuzis.
Grosso calibre
Segundo os dados, a região com maior concentração de registros de fuzis, entre todas as armas registradas pelos CACs, é a 9ª RM. A região engloba o Mato Grosso e o Mato Grosso do Sul, nela há 42.123 armas, delas 33.087 são de grosso calibre. Na sequência está a 12ª RM, que representa a região Norte, com exceção do Pará, lá os registros chegam a 20.162 armas, sendo 14.653 fuzis.
O Distrito Federal está dentro da 11º RM, composta ainda pelos estados de Goiás, Tocantins e a região do Triângulo Mineiro. O DF apresenta o terceiro maior arsenal proporcional de fuzis adquiridos por CACs no país. Ao longo de quatro anos, foram registradas na localidade 74.739 desse tipo de arma. Somente em 2022, essa região registrou a quantidade de 29.831 armas por CACs, com mais da metade delas fuzis (20.474). Ou seja, há um expressivo número de armas de grosso calibre em regiões nas quais as pesquisas eleitorais apontam a preferência pelo presidente da República, defensor do armamento.
Porte está proibido
A partir desta sexta-feira (30/9) até a terça-feira seguinte (4/10), o porte de armas, mesmo para policiais fora de serviço, é proibido em um raio de 100m dos locais de votação. A determinação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de 30 de agosto deste ano se estende a todos estados e ao Distrito Federal. Dessa forma, mesmo os eleitores que tenham porte de arma, não poderão estar armados perto das seções e locais de votação.
O TSE analisa solicitações da sociedade civil que pedem o fechamento dos clubes de tiro no período de 48 horas antes e depois das eleições, a medida resultaria na suspensão total do porte de trânsito dos 630 mil CACs do país, que desde alteração em decretos, passaram a poder portar suas armas municiada com a justificativa de defesa do arsenal.
As frequentes alterações em decretos de regulação de armamento são, segundo Bruno Langeani, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, uma tática do governo. "A pulverização de decretos realizada pelo governo Bolsonaro foi intencional para dificultar ações dos outros Poderes e até a compreensão pela imprensa e pela sociedade", acredita.
Aponta ainda que, se confirmado o fechamento dos clubes de tiro durante as eleições, o porte para CACs acaba. "São quase 700 mil pessoas que deixam de andar armadas durante as eleições", ressalta.
Laudos psicológicos com menor rigor
Um dos elementos essenciais para obter o certificado de registro de CAC é o laudo psicológico. Até 2021, ele podia ser emitido apenas por psicólogos treinados e fiscalizados pela Polícia Federal (PF). Com o decreto nº 10.629, editado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), a necessidade de treinamento desses profissionais passou a não ser obrigatória. Assim, qualquer psicólogo com registro profissional ativo no Conselho Regional de Psicologia (CRP) pode realizar a avaliação para o cidadão que deseja a emissão do registro como CAC.
Anteriormente, o Exército só aceitava, para o registro de CACs, laudos com assinatura de psicólogos credenciados pela PF. A abertura de edital de inscrição para esse processo abre esporadicamente pela internet, sem um intervalo de tempo definido. O curso é aplicado por psicólogos da própria Polícia Federal.
Eles repassam a parte teórica e o treinamento dos testes a serem aplicados. Os profissionais que desejavam o credenciamento deveriam ter três anos de formação e entregar a documentação solicitada para passar por uma avaliação.
Credenciada desde 2018 pela PF, a psicóloga Isabelle Lavocat, explica que o laudo psicológico dos candidatos a CAC resulta de uma bateria de testes que avaliam a atenção, memória e personalidade, também há uma entrevista semi-estruturada pela Polícia Federal, na qual se analisa o histórico da pessoa. "Tem bastantes pessoas que são consideradas inaptas, geralmente reprovam no teste de atenção por não atingirem a média. Na personalidade também fica perceptível se há uma agressividade em excesso e impulsividade", relatou a especialista.
A mudança imposta pelo decreto abriu uma lacuna no processo de reconhecimento da aptidão psicológica, já que alguns profissionais sem o treinamento adequado poderiam ser procurados por cidadãos que buscavam o seu direito de registro de CAC. Com isso, o CRP construiu uma espécie de manual orientativo, decorrente de um Grupo de Trabalho montado entre o conselho e a PF — as Forças Armadas receberam o convite para ser um dos atores no processo de montagem, mas o CRP não confirmou se participou.
"Nos reunimos com a PF para obter uma orientação técnica e fazer uma orientação em conjunto para regular a prática para o manuseio de arma de fogo e retirada da CAC. Nós temos interesse de que seja qualificada, temos 24 regionais e realidades distintas, por isso organizamos um documento de acordo com o que recebemos na ouvidoria. E tem uma questão firme com os direitos humanos", explicou Katya Luciane de Oliveira, conselheira do Conselho Federal de Psicologia (CFP).
O trabalho continuou a ser aperfeiçoado pelo CFP já que surgiram algumas especificidades, como, por exemplo, a procura de povos originários por esse direito. "Houve um crescimento na demanda e como a lei fala da avaliação psicológica nesse contexto, os psicólogos também têm feito mais. Tem que ter um caminho dialógico com a Polícia Federal para que tenha um documento que não confronte o outro", ressaltou Luciane.
Por Tainá Andrade e Henrique Lessa - Correio Braziliense
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