“E u só quero é ser feliz/ Andar tranquilamente na favela onde eu nasci”. Esse é um trecho do Rap da felicidade, que se consagrou na voz dos funkeiros Cidinho e Doca, nos anos 90. Clamando por justiça e direitos, a canção, lançada há quase três décadas, continua atual perante as desigualdades que ainda assolam as periferias do país. Em meio a esse cenário, o engajamento político tem sido a estratégia adotada para o alcance das mudanças nesses territórios, e são as mulheres negras periféricas que têm ganhado destaque no front. A ala proporcional (legislativo) das eleições municipais deste ano no Recife e Região Metropolitana é a prova disso, mas as dificuldades para avançar em um campo ainda dominado pela branquitude continuam latentes.
Dados estatísticos do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) comprovam as disparidades raciais que existem entre os/as candidatos/as, levantamento que passou a ser feito apenas em 2014. Além da questão racial, as informações também apresentam o abismo de representatividade por gênero, fator que coloca mulheres negras em um patamar duplamente crítico, como atestam as últimas eleições estaduais e municipais. Segundo o TSE, nas eleições de 2014 apenas 28,57% das mulheres eleitas em Pernambuco eram negras, sendo as brancas 71,43%.
Em 2018, apesar do avanço no número de candidaturas femininas eleitas, o número de mulheres negras reduziu, sendo elas 23,07%. Em relação às eleições municipais, as desigualdades permanecem. No Brasil, mulheres negras são 27,8% de toda a população brasileira, entretanto, de acordo com dados do movimento Mulheres Negras Decidem (MND), em 2016 elas eram apenas 3,2% das prefeitas e 5% das vereadoras eleitas nos municípios do país. No Recife, os resultados também são precários. Naquele ano, não houve nenhuma candidata negra na disputa pela prefeitura. Já na corrida pela Câmara Municipal, das 303 mulheres que concorriam, 165 (54,4%) eram negras, não tendo sido nenhuma eleita; mulheres brancas eram 135 (44,5%), tendo sido seis (15,4%) eleitas. Em 2020, o cenário se repete na cidade entre as chapas majoritárias, não havendo nenhuma mulher negra na disputa; e entre as 886 candidaturas proporcionais, elas correspondem a 18,5%.
Em busca de mudanças nesse cenário de sub-representação, a campanha Eu Voto em Negra tem como objetivo apresentar e fortalecer a candidatura dessas mulheres e conscientizar a população sobre a importância em enegrecer a política brasileira. Uma das organizadoras da campanha, Itanacy Oliveira, diz acreditar na disposição dessas postulantes, que constituem o pleito deste ano, para o enfrentamento à desigualdade abissal que separa negros/as e brancos/as. “Não aguentamos mais estar em todos os índices negativos que este país apresenta no âmbito social. Este é o momento em que mulheres negras se colocam e eu tenho certeza que muitas serão eleitas para compor esse pleito eleitoral. Precisamos ter um parlamento mais enegrecido, com a verdadeira cara do Brasil”, ressaltou.
Uma vez eleito/a, o/a vereador/a passa a integrar o Poder Legislativo municipal tendo como função fundamental representar as demandas do povo perante o poder público. Sendo assim, a ocupação desses espaços por mulheres negras é a oportunidade de trazer transformações essenciais para os territórios periféricos que carecem de estruturas básicas para a garantia do bem viver.
Concorrendo a uma vaga na Câmara Municipal do Recife pela candidatura coletiva Recife Resiste (PSol), Anna Karla acredita que a eleição de candidaturas periféricas pode impulsionar o atendimento às demandas da periferia para que direitos básicos não sejam privilégios de poucos, mas desfrute de todos. “As demandas da periferia são sempre por esses direitos que já deveriam ser nossos, pois são garantidos pela Constituição Federal, como saúde, educação, emprego e renda, moradia, ou seja, o direito à vida, à plena cidadania”.
Panorama semelhante é visto na RMR
Além da capital pernambucana, a Região Metropolitana do Recife (RMR)também segue o mesmo cenário de sub-representação política, como mostram dados do MND referentes aos municípios de Camaragibe, Olinda e Paulista. Nas elei s eleições de 2016, das 43 candidatas negras a vereadora em Camaragibe, apenas uma foi eleita. Este ano, elas são 88 (19, 9%) na disputa.
Nas últimas eleições municipais de Olinda, das 95 mulheres negras (20,3%) na corrida pela Câmara Municipal, apenas uma (5,9%)foi eleita; em 2020, apesar do crescimento no número total de candidatos a vereador, houve uma diminuição percentual para mulheres negras, correspondendo a 19,1%. Cenário similar ocorre em Paulista. Há quatro anos, 72 mulheres negras (18%) concorriam a uma vaga na câmara municipal, e assim como os outros municípios citados, apenas uma (6,7%)foram eleitas. Nas eleições de 2020, elas somam 110 candidaturas (20,2%) na disputa.
Candidata a vereadora pelo município de Olinda, Mãe Beth de Oxum (PCdoB) alerta que a forma como a política é construída no Brasil fortalece as estruturas excludentes que não permitem um cenário mais participativo e plural. “A Câmara Municipal de Olinda é um exemplo. Dos 17 vereadores que compõem a casa, 15 são homens e apenas duas são mulheres. É uma anomalia ou não é?”, questionou. “Dentro desses espaços de decisão,não vemos o povo brasileiro sendo representado. Agora, mais do que nunca, é preciso trazer a voz da periferia, das mulheres negras, dos LGBTQIA+, dos indígenas, porque existimos”, frisou.
Também candidata a vereadora, Biatriz Santos (PT) concorre a uma vaga na Câmara Municipal de Camaragibe e afirma que ter mulheres negras periféricas lutando por suas comunidades nos espaços de poder contribui com a luta por uma política mais inclusiva.
Pelo STF, o início de uma reparação histórica
Um fator que tem ganhado destaque e buscado impulsionar uma maior participação de candidaturas negras nessas eleições é a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que determinou que partidos políticos devem dividir dinheiro e tempo de acordo com a proporção de candidaturas negras e brancas. Moradora do município de Paulista, Flávia Hellen também é integrante de candidatura proporcional pelo PT. Mulher negra da periferia, ela considera a ação do STF uma reparação em virtude aos fatores históricos que sempre colocaram a população negra em desvantagem.
“Essa decisão, além de representar uma imensa conquista, é também uma reparação histórica. A partir dessa proporcionalidade surge a oportunidade de nos colocar em pé de igualdade com a população branca, que ocupa todos os espaços de poder.” avaliou. Para o mestre em Ciências Políticas Caio Santos essa decisão também explicita a estrutura racista que insiste em manter candidaturas negras à margem do pleito político. “A prova de que a divisão de dinheiro não é feita de forma correta pelos partidos vem do aumento do potencial obrigatório de divisão proporcional. Apesar de não ser a única coisa que pode equilibrar o jogo, isso já é um indício que havia um grande erro nessa divisão dos recursos”, apontou.
Os impactos dessa estrutura podem ser percebidos nas chapas majoritárias onde não há candidatas negras disputando as eleições municipais do Recife. “No contexto das (candidaturas) majoritárias é nitidamente um reflexo das estruturas embranquecidas, já que elas são decididas pelas executivas dos partidos que, inclusive, instituem e destituem diretórios, ou seja, têm poder de escolha.”, relatou.
Para Mãe Beth de Oxum falta “disposição das legendas em abraçar candidaturas mais plurais, elas são muito atreladas aos padrões que se referem a homens, brancos, héteros. Precisam aprender muito com a diversidade ainda”, pontuou. Caio Santos acredita que “cada vez mais se entende que é através da mulher negra e periférica que se chega às vitórias eleitorais e, por consequência, às políticas públicas necessárias para o combate às desigualdades sociais” caminho que, para ele, desembocará na renovação política que o Brasil precisa.
Por Elizabeth Souza/ Diário de Pernambuco