Nas belas paragens de Itapuã, na Bahia, vê-se ao longe uma jangada. Silenciosa, vai sumindo no horizonte, conduzida por um simpático ancião de cabeça toda branca, sereno, a cantar uma melodia que parece acompanhar o ritmo das ondas:
“A jangada saiu/ Com Chico Ferreira/ E Bento.../ A jangada voltou só...
“Com certeza foi, lá fora,/ algum pé-de-vento.../ A jangada voltou só.../ Chico era o boi do rancho/ Nas festas de Natá/ Não se ensaiava o rancho/ Sem com Chico se contá./ E agora que não tem Chico/ Que graça que pode ter?.../ Se Chico foi na jangada.../ E a jangada voltou só...
“A jangada saiu...
“Bento cantando modas/ Muita figura fez/ Bento tinha bom peito/ E pra cantar não tinha vez/ As moças de Jaguaripe/ Choraram de fazer dó/ Seu Bento foi na jangada/ E a jangada voltou só...”
Essa é uma das imagens que sempre na Alma guardarei do famoso cantor, poeta, compositor e violonista baiano Dorival Caymmi, que voltou à Pátria Espiritual em 16 de agosto de 2008, na cidade do Rio de Janeiro. Mais vivo do que nunca, pois os mortos não morrem, passa a fazer parte de um time de estrelas que já contava com a presença de Jorge Amado, Carmen Miranda, Tom Jobim, Cartola, Herivelto Martins e Dalva de Oliveira (saudosos pais do amigo Pery Ribeiro), além de tantos outros valores inestimáveis da cultura brasileira. Aliás, Pery e também Nonato Buzar, ambos também hoje na Pátria da Verdade, estiveram no cemitério São João Batista, para homenagear o grande ícone da música nacional.
Vidas cruzadas
Em diversas oportunidades, inclusive neste espaço, comentei o fato de esse extraordinário músico ter sido decisivo na aproximação de meus pais, escolhido por eles como padrinho de casamento. Passei a infância e a mocidade ouvindo e cantando Caymmi lá em casa.
A dedicatória que recebi da amável Stella, neta dele, em sua obra Dorival Caymmi – O mar e o tempo, fala-nos dessa amizade: “Querido Paiva Netto, a história de teu pai se cruza com a de meu avô. Que você curta muito o meu livro, beijos, Stella”.
Ainda nessa biografia, há o seguinte registro da autora: “(...) o jornalista e radialista Alziro Zarur (1914-1979) – futuro fundador da Legião da Boa Vontade – escreveu uma nota em que afirmava, com certo exagero, que, ‘se não houvesse balangandãs, torço de seda, e se não houvesse Dorival Caymmi, não haveria Carmen Miranda nem seu sucesso nos Estados Unidos’”.
Na necrópole, fiz questão de levar minha solidariedade aos filhos do inesquecível Caymmi: Dori, Danilo e Nana. Ao abraçar carinhosamente a querida Nana, pedi a Deus que enviasse também as melhores vibrações de fraternidade aos demais familiares de nosso amigo: sua amada esposa, dona Stella Maris, os netos e bisnetos do exemplar casal.
A jangada “voltou só”, mas Caymmi prossegue navegando pelos mares do universo. E os bons Espíritos, nossos Anjos Guardiães, se incumbirão sempre de bem cuidar dele no Céu.
Lembrança de Getúlio Vargas
No meu livro Crônicas e Entrevistas, da Editora Elevação (2000), conto que, em 24 de agosto de 1954, era eu um adolescente. Saía sempre cedo para estudar. Naquele dia, de súbito, uma professora, com os olhos esbugalhados, irrompe sala adentro. Chorosa, grita: “Aconteceu uma coisa horrível! Getúlio se suicidou!”
Um raio caiu sobre todos nós, meninos e meninas que estudávamos. As classes foram dispensadas. No país, salvo as exceções de praxe, paixões e baixezas políticas provisoriamente esquecidas. Os homens lembraram-se de que são humanos. Fui andando pela Dias da Cruz, no bairro carioca do Méier, enquanto pensava, como pensava um menino de 13 anos naquele tempo... Havia uma indescritível angústia no ar. Aquela rua tão bela quedava sombria, apesar da claridade matutina. Era a consternação das Almas...
Tudo passa. Mas o povo permanece.
Quantas vezes a população expressa mais refinado sentimento do que os seus condutores! Muitos rostos apareceram chorando pelas calçadas. E eu pensava, como pensava um menino de 13 anos naquele tempo... Que será do meu país daqui pra frente?!
Depois de vários minutos meditando sobre a tristeza geral e a dor da família Vargas, olhei para o alto e disse de mim para comigo mesmo: Por mais cruel que seja o sofrimento, a vida continua!... Por mais importante que seja um homem, não é maior do que a sua pátria. Tudo passa. Mas o povo permanece (...).
Transcorridos alguns dias, uns debochados surgiram com uma brincadeira fora de hora: “Essa droga de país só tem um jeito! Vamos provocar uma guerra com os estrangeiros... Aí eles vêm, ganham, e estarão resolvidos os nossos problemas...”. Cinismo puro! Ainda bem que a elite de uma nação é o seu povo.
José de Paiva Netto, jornalista, radialista e escritor.
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