Foi assim. Sozinho. Sem conversa, sem cuidado, sem parede para se encostar, sem colo de mãe para chorar que Wandoberg, aos 23 anos, fez a pior descoberta de sua vida. Puxou o lençol branco que lhe cobria o corpo e desabou. Só conseguia enxergar um pé. O direito. O esquerdo não existia mais. Com o corpo todo quebrado, em cima de uma cama de hospital público, só lhe restou explodir. Gritou, xingou, pediu para morrer. Entrou em choque. Não era só o pé esquerdo que lhe haviam cortado. Tinham lhe arrancado a perna.
Wandoberg não sabia. Mas sua tragédia virou a tragédia nossa de cada dia. Ele pilotava uma Honda CG, motor 150 cilindradas, quando teve o joelho dilacerado por outro motoqueiro que fez uma curva a 120 km/h. Enlouquecido, o piloto bateu de frente com Wandoberg e sua CG. Moto atropelando moto. Morto de um lado. Mutilado do outro. Solitário em sua cama de hospital, o jovem se viu, em fração de segundos, engrossando as fileiras de um exército que só faz crescer. Uma legião de amputados. Sequelados para sempre pela guerra travada em cima de duas rodas.
A ausência de surpresa não faz a dor doer menos. Delano já sabia o que ia acontecer. Mesmo assim, na sala de cirurgia pediu para olhar o rosto do médico.
O senhor tem certeza do que está fazendo? Não tem jeito de eu voltar com minha perna para casa?
Ele, então com 26 anos, já tinha autorizado a amputação da perna direita. Mas, ali, diante do inevitável, o pânico roubou suas forças. Confiscou sua coragem. O médico tirou a máscara, olhou nos olhos do paciente e reafirmou a sentença. Não tinha jeito. Se ficasse mais dois ou três dias com a perna, Delano podia morrer. A perna podre contaminaria o resto do corpo. Não tinha inteirado nem 24 horas do momento em que o jovem havia sido arremessado da motocicleta que pilotava para cima de um Chevette que dava ré na hora errada. A perna do rapaz foi parar dentro do para-choque do carro. A maior parte ficou lá mesmo. O que sobrou, mais pele do que carne, grudado ao corpo de Delano, era mais morte do que vida.
Fala pouca, olhar distante, sofrimento contido. O pé esquerdo enfaixado de Francisco tinha os dias contados. No dia em que a reportagem esteve no Hospital da Restauração para conversar com o jovem de 27 anos, faltavam 48 horas para a cirurgia. Era uma quarta-feira. A operação seria na sexta. Francisco nem pensou em argumentar. Achou mais fácil se conformar. É melhor cortar o mal pela raiz, aceitou. Tinha assinado um dia antes o papel que autorizava a mutilação do pé. Era a mulher, Lucineide, quem ainda esboçava alguma reação. O medo da cirurgia se misturava com a apreensão do que seriam os dias depois dela. Na hora em que a pessoa vai dormir, tira o pé de mentira ou fica com ele?, perguntou, se referindo a uma futura prótese e sem a menor noção de como seria, dali em diante, a vida de amputado do marido motociclista.
Wandoberg Ferreira da Silva, hoje com 27 anos, mora em Jaboatão dos Guararapes, no Grande Recife. Delano Ramos de Lima, 28, em Gravatá, no Agreste. Francisco de Assis dos Santos é sertanejo de Petrolândia. Juventude interrompida. Estagnada meses e meses em cima de uma cama. Não é coincidência. É estatística. A epidemia em que se transformaram os acidentes de motos está criando uma geração de mutilados. Jovens, em sua grande maioria. Vinte e poucos anos. Aposentados precocemente, dependentes de uma previdência feita para velhos. 90% dos acidentados de moto que deram entrada no Hospital da Restauração este ano tinham entre 19 e 25 anos, confirma o médico João Veiga, detalhando o alarmante indicador da mais recente pesquisa sobre o problema, feita, entre janeiro e maio, com 100 pacientes da maior unidade de traumatologia do Norte e Nordeste.
O retrato cruel de jovens mutilados não compromete só o hoje. Tira a perspectiva do futuro. É o amanhã que está ameaçado por um contingente cada vez maior de sequelados. O custo é altíssimo para a sociedade. Contas feitas pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2005, e atualizadas em 2010, dão o tamanho do prejuízo. Cada acidentado de moto internado custa ao Estado R$ 955 mil, considerando gastos com despesas de hospital, fisioterapia, reabilitação, anos de trabalho perdido, seguro obrigatório e aposentadoria. Dificilmente estas pessoas voltam a ter o mesmo nível de produtividade de antes do acidente. Vandoberg, Delano e Francisco, todos trabalhavam e ganhavam mais do que o salário mínimo pago pelo INSS. Nenhum deles nasceu com deficiência. É preciso reaprender a viver com as limitações do corpo. É mais difícil aceitar. É aqui, na exigência de se reinventar, que entra o segundo e decisivo ato dessa tragédia diária.
ANTÍDOTO - Não há escolha. É acreditar na superação ou viver sentindo pena de si mesmo. O olhar de pena é o pior porque é derrotista, diz Delano, que arrumou um antídoto para as pessoas que veem sua deficiência como atestado de inferioridade. Eu olho dentro do olho dela e não falo nada. Mas o meu olhar é superior ao dela. Eu não passo fraqueza, passo fortaleza. Se eu não me defender para mim mesmo, vou achar que sou fraco. E isso eu sei que não sou, ensina, com uma convicção e um exemplo de vida que reafirmam suas palavras. Quase três anos após a mutilação, ele voltou a estudar, a trabalhar como pintor e faz planos de construir a própria casa.
Wandoberg não perdeu só a perna. Seu braço, embora preso ao ombro, não lhe obedece mais. Vive guardado numa tipoia para não lhe tirar, além do movimento perdido, o equilíbrio do corpo. Foi meu segundo baque. Chorei por duas horas sem parar. Como eu ia viver sem a perna e sem um braço? A pergunta, impossível de ser respondida nos primeiros dias, nos primeiros meses, hoje é tirada de letra. Ele não só vive, como trabalha o dia inteiro, pega dois ônibus, um metrô lotado, duas horas para chegar ao emprego de auxiliar administrativo. Trabalho onde ele acabou de ser promovido. Virou auxiliar de contas.
O próximo passo do rapaz é cursar uma faculdade. Ensino superior pensando num concurso público e num salário melhor. Quem o vê com a prótese, revestida com espuma e uma meia cor da pele, quase não percebe que ali há uma ausência. Sobre os primeiros passos com a perna de metal, dados há uns dois anos, recorda-se como se fosse ontem. Sabe o cachorro quando está preso e se solta? Fui eu, para cima e para baixo. Andando, subindo e descendo rua, batendo tudo o que é canto. O próprio Wandoberg trata de lembrar o desespero que lhe invadiu a alma na cama solitária do hospital. Pergunta se eu quero morrer hoje. Se Deus me der 80 anos, eu quero viver 90, diz, com a experiência de quem, diante da estranheza de perder um pedaço de si, soube fazer o impossível.
Ciara Carvalho
Do Jornal do Commercio
Wandoberg não sabia. Mas sua tragédia virou a tragédia nossa de cada dia. Ele pilotava uma Honda CG, motor 150 cilindradas, quando teve o joelho dilacerado por outro motoqueiro que fez uma curva a 120 km/h. Enlouquecido, o piloto bateu de frente com Wandoberg e sua CG. Moto atropelando moto. Morto de um lado. Mutilado do outro. Solitário em sua cama de hospital, o jovem se viu, em fração de segundos, engrossando as fileiras de um exército que só faz crescer. Uma legião de amputados. Sequelados para sempre pela guerra travada em cima de duas rodas.
A ausência de surpresa não faz a dor doer menos. Delano já sabia o que ia acontecer. Mesmo assim, na sala de cirurgia pediu para olhar o rosto do médico.
O senhor tem certeza do que está fazendo? Não tem jeito de eu voltar com minha perna para casa?
Ele, então com 26 anos, já tinha autorizado a amputação da perna direita. Mas, ali, diante do inevitável, o pânico roubou suas forças. Confiscou sua coragem. O médico tirou a máscara, olhou nos olhos do paciente e reafirmou a sentença. Não tinha jeito. Se ficasse mais dois ou três dias com a perna, Delano podia morrer. A perna podre contaminaria o resto do corpo. Não tinha inteirado nem 24 horas do momento em que o jovem havia sido arremessado da motocicleta que pilotava para cima de um Chevette que dava ré na hora errada. A perna do rapaz foi parar dentro do para-choque do carro. A maior parte ficou lá mesmo. O que sobrou, mais pele do que carne, grudado ao corpo de Delano, era mais morte do que vida.
Fala pouca, olhar distante, sofrimento contido. O pé esquerdo enfaixado de Francisco tinha os dias contados. No dia em que a reportagem esteve no Hospital da Restauração para conversar com o jovem de 27 anos, faltavam 48 horas para a cirurgia. Era uma quarta-feira. A operação seria na sexta. Francisco nem pensou em argumentar. Achou mais fácil se conformar. É melhor cortar o mal pela raiz, aceitou. Tinha assinado um dia antes o papel que autorizava a mutilação do pé. Era a mulher, Lucineide, quem ainda esboçava alguma reação. O medo da cirurgia se misturava com a apreensão do que seriam os dias depois dela. Na hora em que a pessoa vai dormir, tira o pé de mentira ou fica com ele?, perguntou, se referindo a uma futura prótese e sem a menor noção de como seria, dali em diante, a vida de amputado do marido motociclista.
Wandoberg Ferreira da Silva, hoje com 27 anos, mora em Jaboatão dos Guararapes, no Grande Recife. Delano Ramos de Lima, 28, em Gravatá, no Agreste. Francisco de Assis dos Santos é sertanejo de Petrolândia. Juventude interrompida. Estagnada meses e meses em cima de uma cama. Não é coincidência. É estatística. A epidemia em que se transformaram os acidentes de motos está criando uma geração de mutilados. Jovens, em sua grande maioria. Vinte e poucos anos. Aposentados precocemente, dependentes de uma previdência feita para velhos. 90% dos acidentados de moto que deram entrada no Hospital da Restauração este ano tinham entre 19 e 25 anos, confirma o médico João Veiga, detalhando o alarmante indicador da mais recente pesquisa sobre o problema, feita, entre janeiro e maio, com 100 pacientes da maior unidade de traumatologia do Norte e Nordeste.
O retrato cruel de jovens mutilados não compromete só o hoje. Tira a perspectiva do futuro. É o amanhã que está ameaçado por um contingente cada vez maior de sequelados. O custo é altíssimo para a sociedade. Contas feitas pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2005, e atualizadas em 2010, dão o tamanho do prejuízo. Cada acidentado de moto internado custa ao Estado R$ 955 mil, considerando gastos com despesas de hospital, fisioterapia, reabilitação, anos de trabalho perdido, seguro obrigatório e aposentadoria. Dificilmente estas pessoas voltam a ter o mesmo nível de produtividade de antes do acidente. Vandoberg, Delano e Francisco, todos trabalhavam e ganhavam mais do que o salário mínimo pago pelo INSS. Nenhum deles nasceu com deficiência. É preciso reaprender a viver com as limitações do corpo. É mais difícil aceitar. É aqui, na exigência de se reinventar, que entra o segundo e decisivo ato dessa tragédia diária.
ANTÍDOTO - Não há escolha. É acreditar na superação ou viver sentindo pena de si mesmo. O olhar de pena é o pior porque é derrotista, diz Delano, que arrumou um antídoto para as pessoas que veem sua deficiência como atestado de inferioridade. Eu olho dentro do olho dela e não falo nada. Mas o meu olhar é superior ao dela. Eu não passo fraqueza, passo fortaleza. Se eu não me defender para mim mesmo, vou achar que sou fraco. E isso eu sei que não sou, ensina, com uma convicção e um exemplo de vida que reafirmam suas palavras. Quase três anos após a mutilação, ele voltou a estudar, a trabalhar como pintor e faz planos de construir a própria casa.
Wandoberg não perdeu só a perna. Seu braço, embora preso ao ombro, não lhe obedece mais. Vive guardado numa tipoia para não lhe tirar, além do movimento perdido, o equilíbrio do corpo. Foi meu segundo baque. Chorei por duas horas sem parar. Como eu ia viver sem a perna e sem um braço? A pergunta, impossível de ser respondida nos primeiros dias, nos primeiros meses, hoje é tirada de letra. Ele não só vive, como trabalha o dia inteiro, pega dois ônibus, um metrô lotado, duas horas para chegar ao emprego de auxiliar administrativo. Trabalho onde ele acabou de ser promovido. Virou auxiliar de contas.
O próximo passo do rapaz é cursar uma faculdade. Ensino superior pensando num concurso público e num salário melhor. Quem o vê com a prótese, revestida com espuma e uma meia cor da pele, quase não percebe que ali há uma ausência. Sobre os primeiros passos com a perna de metal, dados há uns dois anos, recorda-se como se fosse ontem. Sabe o cachorro quando está preso e se solta? Fui eu, para cima e para baixo. Andando, subindo e descendo rua, batendo tudo o que é canto. O próprio Wandoberg trata de lembrar o desespero que lhe invadiu a alma na cama solitária do hospital. Pergunta se eu quero morrer hoje. Se Deus me der 80 anos, eu quero viver 90, diz, com a experiência de quem, diante da estranheza de perder um pedaço de si, soube fazer o impossível.
Ciara Carvalho
Do Jornal do Commercio
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